terça-feira, 14 de abril de 2015

Invocação às Musas: o caso do Canto II da Ilíada

Conforme destacamos no último post, a invocação às Musas, dentro do contexto do período arcaico da Grécia, era mais do que uma simples convenção poética, uma vez que essas deusas eram consideradas as responsáveis pela produção poética.

A Ilíada nos traz um bom exemplo de invocação no Canto II. Apesar da invocação ter sido feita no início do poema, no segundo canto iliádico há um trecho que certamente era bastante difícil para os poetas: conhecido como o Catálogo das Naus, a passagem lista os nomes de vários guerreiros que foram combater em Troia. Imaginem isso, dar uma lista extensa de nomes, e dentro do metro (o hexâmetro dactílico)! Diante da dificuldade, o poeta faz uma nova invocação às Musas, que clareia bem qual seria a relação entre aedo e Musas dentro desse pensamento. Vamos aos versos (vv. 484-492, citados na tradução de Frederico Lourenço):

Dizei-me agora, ó Musas que no Olimpo tendes vossas moradas -
pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis,
ao passo que a nós chega apenas a fama e nada sabemos -,
quem foram os comandantes dos Dânaos e seus reis.
A multidão eu não seria capaz de enumerar ou nomear,
nem que tivesse dez línguas, ou então dez bocas,
uma voz indefectível e um coração de bronze,
a não ser que vós, Musas Olímpias, filhas de Zeus detentor da égide,
me lembrásseis todos quantos vieram para debaixo de Ílion.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Por que os poemas começam da maneira que começam?


“Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou”
(Odisseia, Canto I, verso 1)
“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”
(Ilíada, Canto I, verso 1)
*Ambas as traduções são de Frederico Lourenço

Os poemas homéricos se iniciam com o que chamamos de proêmio. Essa se tornou uma convenção do gênero épico: em geral, todos os poemas épicos possuíam um proêmio, versos introdutórios com função específica.

O post de hoje não tratará dos proêmios inteiros, mas se ocupará apenas do primeiro verso de cada um dos poemas homéricos, a Ilíada e a Odisseia. Pode-se notar que eles são estruturalmente bem parecidos, não? Por que são assim?

Os poemas épicos se iniciam pelo que se convencionou chamar “invocação às Musas”. As Musas são deusas associadas à memória, ao canto e à dança, filhas de Memória com Zeus, o deus soberano. Para os gregos antigos, elas eram as responsáveis pela produção poética: o aedo (poeta) era apenas o porta-voz das Musas; o canto era considerado algo de origem divina. A invocação, portanto, para os gregos antigos, era mais do que uma simples convenção.

Numa sociedade em que, na melhor das hipóteses, a escrita apenas começava a ser reintroduzida (ou seja, em uma sociedade caracterizada pela oralidade), não é de se estranhar que as Musas, filhas da Memória, tivessem essa importância: para os gregos, eram elas que possibilitavam que os aedos fossem capazes de cantar tantas coisas de tempos passados; elas, como divindades, são oniscientes, tudo sabem, e como filhas de Memória, tudo lembram.


O primeiro verso dos poemas, portanto, invoca o auxílio das Musas, pois sem elas o canto não seria possível: a Musa canta para o poeta, e o poeta para o público. Junto com a invocação, aparecem mencionados, de imediato, os temas dos poemas: no caso da Ilíada, a ira de Aquiles; no da Odisseia, o homem astuto (Odisseu).

terça-feira, 31 de março de 2015

Afinal, sobre o que falam a Ilíada e a Odisseia?



Em sua Poética, Aristóteles elogia Homero pela unidade de ação de seus poemas. Homero não está interessando em contar toda a saga de Troia, desde o motivo primeiro, o julgamento de Páris, até a tomada da cidade e seus desdobramentos. Antes, cada poema escolhe um único evento a narrar. Vejamos, então, de que trata cada um dos poemas:

A Ilíada: o poema bélico de Homero canta a ira de Aquiles; ele trata da briga entre Aquiles, melhor guerreiro grego, e Agamêmnon, chefe das tropas, e suas consequências funestas para os aqueus. São narrados no poema cerca de dois meses do nono ano da guerra.


A Odisseia: trata-se de um poema de retorno, que canta a volta para a casa, finda a guerra, de Odisseu, um dos principais guerreiros gregos. Ele demora dez anos para conseguir chegar à sua terra natal, Ítaca. Quando ele finalmente chega a Ítaca, contudo, o retorno ainda não está concluído: ele precisa reinstaurar a ordem em sua própria casa, que foi tomada pelos cento e oito pretendentes de sua mulher, Penélope.

sábado, 10 de janeiro de 2015

A função do epíteto na poesia homérica


(Imagem: Wikipedia)

Embora encontremos algumas traduções em prosa, a poesia homérica no original grego é em verso e metrificada. O nome do metro utilizado é hexâmetro dactílico cataléctico. Hexâmetro, porque são seis pés, cada um composto por um sílaba longa e duas breves (o grego tem sílabas longas e breves, e vogais longas e breves; a duração de uma sílaba breve seria a de um tempo musical, e a de uma sílaba longa, de dois tempos musicais); dactílico, porque a base desse verso é o ritmo tripartido (como os nossos dedos, que possuem três partes, “dáctilo”); cataléctico porque o ritmo básico é sempre interrompido no último pé (ou seja, o último pé tem apenas uma longa e uma breve, ou duas longas, mas nunca uma longa e duas breves).
Durante muito tempo, as pesquisas sobre Homero admitiam que a Ilíada e a Odisseia eram poemas compostos oralmente, mas o modo de composição oral não era levado em conta na hora de analisar os poemas. As repetições e os epítetos não raro eram (e ainda são) suprimidos ou atenuados pelos tradutores, como se fossem falhas e não partes integrantes do estilo. O trabalho do estudioso Milman Parry, publicado em 1928, deu um passo importantíssimo para a compreensão da marca da oralidade no estilo de Homero.

Parry provou que a poesia homérica é um sistema formular funcional e prático, que trabalha com “blocos pré-fabricados”. Esse sistema é formular porque há expressões, “blocos”, que se repetem: por exemplo, para dizer “Odisseu”, em uma determinada extensão métrica, em uma determinada posição do verso, há uma determinada fórmula (geralmente composta por nome e epíteto; por exemplo, “o divino Odisseu”, em fim de verso). Funcional e prático, porque econômico: há, em geral, apenas um epíteto para se referir a cada personagem em cada extensão métrica, com raros casos de sobreposição. A economia do sistema garante sua praticidade e funcionalidade, pois o poeta não precisava escolher entre várias opções de fórmulas e epítetos – o que poderia, talvez, prejudicar a fluência da recitação. Assim, as fórmulas eram essenciais para o sucesso da composição oral, uma vez que facilitavam, e muito, o trabalho do aedo/ rapsodo. 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

"Aquiles Pelida"


Geralmente, quando começamos a ter contato com um texto antigo, a primeira sensação é de estranhamento. Vejamos a Ilíada: o poema começa com a briga entre Agamêmnon, chefe das tropas gregas que estão guerreando em Troia, e Aquiles, o melhor guerreiro grego. Mas não encontramos apenas os nomes Agamêmnon e Aquiles citados nesses versos. Encontramos, por exemplo, "Aquiles Pelida". O que raios é "Pelida"?
Se você já tentou ler o poema e se fez essa mesma pergunta, calma: você não está sozinho. Esse tipo de dúvida é muito comum. Vamos lá: "Pelida" é o que chamamos de epíteto: um qualificativo que acompanha um nome, seja ele próprio ou não. O que quer dizer "Pelida"? Filho de Peleu. Peleu é o nome do pai de Aquiles. Os epítetos (qualificativos) que se referem à genealogia dos heróis são muito comuns na poesia homérica. Assim, dizer "Aquiles Pelida" é o mesmo que dizer "Aquiles, filho de Peleu". Às vezes pode ficar um pouco mais complicado: Diomedes, outro grande herói grego, é referido em certo ponto como "o filho do Enida", ou seja, ele é o filho do filho de Eneu - no caso, Tideu. 
Nesse momento você deve estar se perguntando por que a poesia homérica usa esses epítetos de forma tão recorrente, não é? Acredite, eles facilitavam muito a coisa. Mas isso vai ficar para o próximo post!

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A primeira aula a gente nunca esquece


Primeira aula de literatura grega: não dá para esquecer. Você entra na sala sabendo que tudo começará por Homero, e espera. Quem foi? Onde nasceu? Onde viveu? Você está curioso, claro. Comigo aconteceu há dez anos. Naquele momento, tudo que conhecia sobre Homero, além de sua obra, era um busto de um homem cabeludo e cego. Coitado do Homero.
Aí a aula começa, e vem a surpresa: não se sabe se existiu um homem chamado Homero. Se existiu, não se sabe nem quando, nem onde ele viveu. Muitas são as anedotas e as teorias. E, de repente, o mais chocante: não se sabe se Homero é o "autor" da Ilíada e da Odisseia, ou ao menos de um dos dois poemas. 
E é isso mesmo: tudo que temos é um nome, e dois poemas incríveis relacionados a ele. Se existiu um homem chamado Homero, pode ter sido um aedo (profissional que compõe poemas orais enquanto os recita, no momento da performance) de extremo talento, mas ainda assim não sabemos qual o grau de interferência que ele teria tido sobre os poemas que são atribuídos a ele. Ele teria criado os poemas oralmente, e depois diversos aedos teriam reproduzido ao longo de séculos suas histórias? Ou ele teria lapidado poemas criados e transmitidos por séculos pela tradição oral, dando-lhes o acabamento e a forma que conhecemos hoje? 
Muitos acreditam que seu nome seja fictício, uma brincadeira com o grego, e significaria "aquele que não vê"; há os que acreditam que os aedos eram, em geral, cegos - faz parte do imaginário grego antigo pensar que um grande bem vem acompanhado de um grande mal e que, portanto, quem tivesse o dom de produzir cantos belíssimos, por exemplo, devia receber, em contrapartida, um mal, que poderia ser a cegueira. Tirésias, o grande adivinho das tragédias gregas, capaz de enxergar o passado, o presente e o futuro, é cego. Demódoco, o aedo que aparece na Odisseia, produz cantos maravilhosos e narra os fatos como se os tivesse presenciado: é cego.
A lição mais importante da minha primeira aula de literatura grega foi que as perguntas são mais importantes que as respostas, e que temos de aprender a lidar com o fato de que não acharemos resposta para todas as perguntas. 
Mataram Homero. Mas os poemas sobrevivem. O que dizer sobre eles?